segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Lamentações (reflexões) Existenciais de um Materialista

Sempre achei engraçado a forma como a população em geral demoniza e trata os ateus como desalmados por não acreditarem em Deus e na dualidade corpo-espírito. "Se não acredita em alma e na vida após a morte, como vc vai respeitar os outros?". Para mim isso não faz sentido.

A lógica para mim é a antagônica: se a existência resume ao corpo e se o próprio Ser da pessoa está no corpo, e não na alma (ou sendo a alma nada senão algo do corpo, parafraseando Nietzsche - e permitindo mais uma vez que o sorriso venha da alma), nada mais lógico do que o respeito e adoração a este Ser agente e sensiente que é único não habita, mas É o próprio corpo.

Pois bem, digressões a parte, escrevo para relatar uma sensação estranha que tive hoje.

Como alguns sabem, comecei hoje o estágio na neurocirugia. Tive a oportunidade de assistir uma cirurgia para tratamento de epilepsia refratária em uma jovem de 22 anos. Pois bem, trocando em miúdos a cirurgia envolve a retirada de parte do lobo temporal, a amigdala (uma estrutura subcortical responsável por respostas de medo e ansiedade) e o hipocampo. Segue uma imagem da internet de um pós operatório de uma destas cirurgias como ilustração:


Mesmo não sendo médico e nem tendo a ver com a área da saúde da pra sentir uma falta aí, não?

Pois bem, estava eu assistindo a cirurgia enquanto os residentes e o chefe cortavam e aspiravam pedaços de cérebro pra cá e pra lá, substância branca aqui, cinzenta ali, uncus, giro parahipocampal, etc etc...

Quando eu me toquei: ei, perai, tudo isso não é meio que importante para essa pessoa? Ou pior: assumindo-me ateu e materialista, tudo isso não é uma parte íntima do Ser desta pessoa?

Não conhecia a paciente, mas me perguntava o que passavam por aqueles axônios e neurônios aspirados: se eram memórias recentes que tentaram se formar, a capacidade de apreciar melodias, a possibilidade de se identificar e se conectar com os outros...

Afinal de contas, num mundo material a alma pode ser dissecada com um bisturi elétrico.

Talvez sua doença, a epilepsia, já tivesse lhe roubado tudo isso e minha divagação não passasse de um delírio juvenil, estudantil, daqueles que pensam demais ou estão apenas assustados. Mas o que conto é que a agonia que senti quando esse pensamento me tomou subiu pela minha espinha e pesou sobre mim como um tanque.

Sabe: perder um órgão ou mesmo um membro é algo temerário mas é concebível. Perder parte de seu psiquismo, perder parte de sua alma (se assim quiser) é uma invasão tão grande que parece simplesmente absurda, fruto de uma ficção científica alucinada e irracional. Mas essa é a consequência de se acreditar na não-transcendência, ser ateu e materialista:

Aceitar que a alma pode ser picotada por um bisturi elétrico.

Diante disso fico pasmo que os transmundanos ainda nos acusem de desumanos: quem vê a Mente como matéria e não como abstração (ou melhor, nada senão abstração identitária da matéria) tem de lidar com o fato de que a essência de todos seus semelhantes está ao alcance de seus dedos. De uma maneira ou de outra o -- outro -- pode ser afetado. A neurocirurgia aqui é um modelo: o cérebro está em contato com o ambiente e tudo o afeta:

e a alma é permeada e transformada a todo momento.

Mas a parte mais trágica da alma terrena, da alma que na verdade é corpo, é que, tal qual o corpo depende de sua conformação biológica, química, física, molecular, atômica, etc... também a mente precisa de sua estrutura intacta... e pode perecer...

a alma é finita...

A finitude só eleva seu valor, pois faz ser necessária a intensidade de suas experiências, a força de sua vida. A vida eterna não precisa de estímulo, de vivência, pois o tempo lhe é disponível.

Mas voltando a vivência: depois pretendo conhecer o que sobrou da paciente. Nunca saberei o que ela era, mas quem sabe posso entender um pouco melhor o que lhe foi retirado.

Notem que eu não me oponho à realização da cirurgia, ela ERA necessária, estou apenas refletindo sobre uma sensação que tive, de como somos frágeis.

Acho que por hoje é isso...

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Xô Satanás