terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O pulmão do poeta

O poeta traga o mundo
e expira sua poesia.

Tem culpa, o poeta?
da fumaça de sua poesia?
da tosse daqueles ao seu redor?

Pode o poeta curar este seu vício,
tratar sua dependência
de destilar do mundo
o pior e o melhor,
o alcatrão e o extase?

Tampouco trata sua boca
de bem formar os gazes,
adocicar os odores,
clarear as cinzas. Tal,
não seria sua natureza.

Sua poesia é isso,
folha queimada,
brasa tragada,
que habita sua respiração,
e segundos depois é expelida.
Deixa atras a tosse,
o cancro, o angina.

Portanto entenda,
ao beijares o poeta,
que o amargo dos teus lábios,
seus dedos amarelados,
seu rosto envelhecido,
seus olhos vermelhos,
vem da carne queimada,
da chama do mundo,

que ele traga de ti.

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Xô Satanás

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Falácia de Inversão no Discurso da Opressão

No intuito de eventualmente me promover de pseudo-intelectual a intelectual de fato (afinal de contas preciso disso pra ser pedante com mais eficiência), estava eu lendo um dos primeiros Diálogos de Platão que se chama Euthifron. O diálogo trata da natureza da piedade e transcorre ao Sócrates questionar a definição dada por Euthifron de que algo é piedoso por ser praticado pelos deuses.

Em determinado momento de seu argumento, Sócrates distingue agentes e objetos na relação de causalidade e sua implicação na definição dos mesmos. Acontece que o objeto ganha seu atributo relativo a ação devido à ação do agente e não o contrário. Por exemplo, um papel se torna rasgado pela ação de um rasgador, neste caso, implicar na relação inversa, isto é, que o rasgador se torna rasgador pelo papel ser rasgado, é incorrer em falácia.

Bom, por que raios este que vos fala resolveu então trazer este argumento aqui? Bom, além de demonstrar meu pedantismo e falar pra todo mundo que eu leio Platão, acho que este passo atras nos fundamentos lógicos pode nos ajudar a entender a patologia do discurso dos agentes sociais opressivos.

O ponto principal deste post é defender que não basta, para os mecanismos de repressão da sociedade, operar por um sistema classificatório performativamente conjurado (por que performativamente? pergunte pra Anita), mas também reforçar a classificação por meio de uma falácia do tipo descrito.

Não entendeu? Acho que nem eu. Um exemplo talvez ajude: não é o fato de um homem ser homossexual que o faz sentir-se atraído por homens, isso é uma falácia! A operação real é a inversa: o fato deste homem só se sentir atraído por homens o torna homossexual. O poder necessita incorrer nesta falácia para incluir o "queer" dentro da classificação e poder assumi-la como real.

Naturalmente, forçar essa falácia guela abaixo serve ao fim de restringir a liberdade individual e justificar a discriminação. Ainda mais naturalmente este processo gera sofrimento psíquico e conflitos sociais.

Algumas consequencias da resolução desta falácia devem ser feitas explícitas: você, meu amigo coxinha, que vive um relacionamento de exclusividade com a sua namorada e trai ela com seja lá quem for, lamento te informar, mas você não é monógamo, por definição. Não que esta classificação (mono vs. polígamo) tenha qualquer importância, mas pelo fato de ser binária e exclusiva (não A implica B e vice-versa) podemos usa-la de maneira explicita para revelar a falácia.

Da mesma forma a implicância com pessoas "assumidas" homossexuais quando pegam alguém do sexo oposto por "se definirem" provém da replicação falaciosa que "homossexuais devem se relacionar apenas com pessoas do mesmo sexo". Aqui neste ponto a pessoa é forçada a entrar em uma classificação, é forçada a se encaixar no esquema da opressão e na sua rede de preconceitos (afinal de contas gay é gay e bi só está passando por uma fase).

Tudo isso pra dizer que os processos opressivos, além de escrotos, são também burros.

Por isso é hoje.

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Xô Satanás

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Perda

Trim, trim, o telefone toca.
--Alô.
--Alô, rapaz, como você tá?
--Bem, bem, que você manda?
--Então, cara, estou aqui meio sem graça por que preciso te dizer uma coisa.
--Magine, não se preocupe, o que que houve?
--Lembra o que você tinha me emprestado?
--Hum, sim...
--Então...
--Não vai dizer que...
--Sim...
--Não pode ser...
--Mas é... perdi seu pâncreas.
--Cara, como você conseguiu?
--Não sei, estava aqui no meu quarto, mas quando fui procurar, não achei.
--Não acredito!
--Desculpa, desculpa mes...
--Tá, tá, pode pedir desculpas, mas como fico sem meu pâncreas?!
--Te arranjo um novo... olha, vai ser melhor, vai estar novinho, novinho.
--Bom mesmo... mas o que faço até lá?
--Ah, acho que é melhor comer umas coisas mais... digeridas?
--Mé... comida digerida é horrível.
--Desculpa, cara...
--Eu gosto tanto de digerir...
--Eu sei.
--...
--Cara, preciso sair, meu fígado quer falar comigo.
--Vai lá... e manda um abraço pra ele por mim.
--Certo, tchau...
--Tchau...

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Xô Satanás

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Diagnóstico

Após alguns segundos de tensão onde o cardiologista sintonizava seu estetoscópio para examinar seu coração, o paciente pergunta:
--Então doutor, é grave?
Ao que ele responde:
--Não, é bem agudo, si bemol maior, diria eu.
--O senhor esta ouvindo o Korotkoff?
--Acredito que o senhor tem um Shostakovitch.
--Como assim, doutor? Em toda minha família é o samba que está no coração.
--Temo dizer que o senhor herdou uma forma recessiva. A ti cabem os clássicos.
Ele voltou pra casa cantarolando Toccata e Fuga.

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Xô Satanás